quinta-feira, 9 de maio de 2013

Florbela Espanca por ela mesma

Uma parte das cartas e postais escritos por Florbela foram publicados por alguns biógrafos ao longo dos anos. Porém, estas publicações foram modificadas por estes organizadores, os quais julgavam que os textos continham ou palavras agressivas, ou nomes que talvez fossem comprometedores, ou por descreverem situações que julgavam ser pouco edificantes. Palavras foram modificadas, trechos omitidos ou reescritos, cartas montadas a partir de parágrafos aleatórios e até frases e parágrafos escritos pelos próprios biógrafos e não por Florbela. Assim, durante muito tempo, aqueles que citaram ou republicaram estas cartas repetiram estes erros, os quais alteravam todo o sentido do que a autora quis dizer originalmente.

Posteriormente (1985), foram publicadas as cartas originais (após uma pesquisa minuciosa pelos textos originais). Além disso, foi publicado também (no centenário da autora), o seu Diário escrito em seu último ano de vida (conhecido por Diário de Útimo Ano), no qual Florbela desabafa intimamente e se descreve com sua característica sinceridade e exatidão, além de mostrar a aproximação de seu suicídio. Seu último escrito no diário foi no dia 2 de Dezembro (seis dias antes de sua morte), o qual dizia "E não haver gestos novos nem palavras novas!".
Fonte: ESPANCA, Florbela. Cartas e Diário. 1. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
Abaixo, trechos de cartas de Florbela e de seu diário, nos quais ela se descreve e faz profundas reflexões.

"(...) Vou descrever-lhe desde já o meu péssimo carácter: sou triste, imensamente triste, duma tristeza amarga e doentia que a mim própria me faz rir às vezes. É só disto que eu rio, e aqui tem V. Exª no meu carácter uma sombra negra, enorme, medonha: a hipocrisia!... Porque eu pareço alegre e toda a gente gaba a minha... alegria! (...). Mas ainda este é o primeiro defeito; o segundo, e para o mundo virtuoso e prático é simplesmente horrível, é o sonhar, sonhar muito, olhar muito além, para longe de todos os que cantam, os que falam, os que riem!... Tenho dias em que todas as pessoas me dão a impressão de pequeninas figuras de papel sem expressão, sem vida.

(...) Eu digo-lhe já como são meus cabelos e e os meus olhos: os cabelos são negros, mas ainda assim nem tanto como a minha alma, pelo menos com o vestido que traz hoje; e os olhos são pardos, sombrios, profundos e maus. Sou pálida, alta e delgada.

(...) Para os que convivem comigo, e que julgam conhecer-me, sou alegre, dizem-me alegre, porque sou blagueuse e irónica. Não conto a ninguém esta tristíssima inferioridade de me sentir uma exilada de toda a alegria sã, franca; não mostro a ninguém a miséria da minha miséria de inadaptável, de insaciada. Detesto o ridículo dum rosto olheirento melancolicamente debruçado com ares de vítima; tenho horror a todos os convencionalismos, às frases feitas, às palavras que já serviram. Incompreendida! Que quererá isto dizer? Quase nada...Quem não compreende, sou eu; eu é que não compreendo os outros, os seus prazeres, os seus gostos, as suas fontes de água clara onde se lavam e onde se contemplam. Não sou de maneira nenhuma uma pessimista, não! Uma emotiva vibrante, exaltada, cheia de élans, de vôos que ultrapassam a vida e os vivos, isso sim!

(...) O meu talento!... De que me tem servido? Não trouxe nunca às minhas mãos vazias a mais pequenina esmola do destino. Até hoje não há ninguém que de mim se tenha aproximado que me não tenha feito mal. Talvez por culpa minha, talvez... O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se não sente bem onde está, que tem saudades... sei lá de quê!"


Excertos de Cartas - n°s. 43, 44, 148 e 147. Encontrados em: ESPANCA, Florbela. Sonetos. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

"A vida em a incoerência dum sonho. E quem sabe se realmente estaremos a dormir e a sonhar e acabaremos por despertar um dia? Será a esse espertar que os católicos chamam Deus?

(...) Compreendi por fim que nada compreendi, que mesmo nada poderia ter compreendido de mim. Restam-me os outros... talvez por eles possa chegar às infinitas possibilidades do meu ser misterioso, inatingível, secreto.

(...) Nas horas que se desagregam, que desfio entre os meus dedos parados, sou a que sabe sempre que horas são, que dia é, o que faz hoje, amanhã, depois. Não sinto deslizar o tempo através dele e sinto-me passar com a consciência nítida dos minutos que passam e dos que se vão seguir. Como compreender a amargura desta amargura? Onde páras tu, ó Imprevisto, que vestes de cor-de-rosa tantas vidas?

Quando eu morrer, é possível que alguém, ao ler esses descosidos monólogos, leia o que sente sem saber dizer que essa coisa tão rara neste mundo - uma alma- se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que eu fui ou o que julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me."

Excertos do Diário do Último Ano. Encontrador em: ESPANCA, Florbela. Sonetos. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.

2 comentários:

  1. Não há palavras várias em que eu possa pensar que sejam capaz de definir a imensidão desses trechos sobre mim. E chego a assustar-me, pois é tão fiel a mim. É tão esclarecedor, é tão nu do meu eu. Se algum dia eu conseguir entregar-me à alguma certeza de almas encarnadas, se algum dia eu conseguir crer nisso, então talvez possa-me ser explicada tanta semelhança. Talvez, eu seja Florbela.

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  2. Florbela... mãe das minhas dores... minha grande referência... quanto eu não dava para saber dizer-me como tu!...

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